segunda-feira, 30 de setembro de 2013


                    
Quando Joaquim Sucupira abandonou o corpo, depois dos sessenta anos, deixou-nos conhecidos a impressão de que subiria incontinenti aos Céus. Vivera arredado do mundo, no conforto precioso que herdara dos pais. Falava pouco, andava menos, agia nunca.
Era visto invariavelmente em trajes impecáveis. A gravata ostentava sempre uma pérola de alto preço, pequena orquídea assinalava a lapela e o lenço, admiravelmente dobrado, caía, irrepreensível, do bolso mirim. O rosto denunciava-lhe o apurado culto às madeiras distintas. Buscava, no barbeiro cuidadoso cada manhã, renovada expressão juvenil. Os cabelos bem postos, embora escassos, cobriam-lhe o crânio com o esmero possível.
Dizia-se cristão e, realmente, se vivia isolado, não fazia mal sequer a uma formiga. Assegurava, porém, o pavor que o possuía, ante os religiosos de todos os matizes. Detestava os padrões católicos, criticava as organizações protestantes e categorizava os espiritistas no rol dos loucos. Aceitava Jesus a seu modo, não segundo o próprio Jesus.
As facilidades econômicas transitórias adiavam-lhe as lições benfeitoras do concurso fraterno, no campo da vida.
Estudava, estudava, estudava…
E cada vez mais se convencia de que as melhores diretrizes eram as dele mesmo. Afastamento individual para evitar complicações e desgostos. Admitia, sem rebuços, que assim efetuaria preparação adequada para a existência depois do sepulcro. Em vista disso, a desencarnação de homem tão cauteloso em preservar-se, passaria por viagem sem escalas com o destino à Corte Celeste.
Dava aos familiares dinheiro suficiente para aventuras e fantasias, a fim de não ser incomodado por eles; distribuía esmolas vultuosas, para que os problemas de caridade não lhe visitassem o lar; afastava-se do mundo para não pecar. Não seria Joaquim – perguntavam amigos íntimos – o tipo religioso perfeito? Distante de todas as complicações da experiência humana, pela força da fortuna sólida que herdara dos parentes, seria impossível que não conquistasse o paraíso.
Contudo, a responsabilidade que o defrontava agora não correspondia à expectativa geral.
Sucupira, desencarnado, ingressava numa esfera de ação, dentro da qual parecia não ser percebido pelos grandes servidores celestiais. Via-os em movimentação brilhante, nos campos e nas cidades. Segredavam ordens divinas aos ouvidos de todas as pessoas em serviços dignos. Chegara a ver um anjo singularmente abraçado à velha cozinheira analfabeta.
Em se aproximando, todavia, dos Mensageiros do Céu, não era por eles atendido.
Conseguia andar, ver, ouvir, pensar. No entanto – desventurado Joaquim! – as mãos e os braços mantinham-se inertes. Semelhavam-se a antenas de mármore, irremediavelmente ligadas ao corpo espiritual. Se intentava matar a sede ou a fome, obrigava-se a cair de bruços porque não dispunha de mãos amigas que o ajudassem.
Muito tempo suportara semelhante infortúnio, multiplicando apelos e lágrimas, quando foi conduzido por entidade caridosa a pequeno tribunal de socorro, que funcionava de tempos em tempos, nas regiões inferiores onde vivia compungido.
O benfeitor que desempenhava ali funções de juiz, reunida a assembléia de Espíritos penitentes, declarou não contar com muito tempo, em face das obrigações que o prendiam nos círculos mais altos e que viera até ali somente para liquidar casos mais dolorosos e urgentes.
Devotados companheiros do bem selecionavam a meia dúzia de sofredores que poderiam ser ouvidos, dentre os quais, por último, figurou Sucupira, a exibir os braços petrificados.
Chorou, rogou, lamuriou-se. Quando pareceu disposto a fazer o relatório geral e circunstanciado da existência finda, o julgador obtemperou:
- Não, meu amigo, não trate de sua biografia. O tempo é curto. Vamos ao que interessa.
Examinou-o detidamente e observou, passados alguns instantes:
- Sua maravilhosa acuidade mental demonstra que estudou muitíssimo.
Fez pequeno intervalo e entrou a argüir:
- Joaquim, você era casado?
- Sim.
- Zelava a residência?
- Minha mulher cuida de tudo.
- Foi pai?
- Sim.
- Cuidava dos filhos em pequeninos?
- Tínhamos suficiente número de criadas e amas.
- E quando jovens?
- Eram naturalmente entregues aos professores.
- Exerceu alguma profissão útil?
- Não tinha necessidade de trabalhar para ganhar o pão.
- Nunca sofreu dor de cabeça pelos amigos?
- Sempre fugi, receoso, das amizades. Não queria prejudicar, nem ser prejudicado.
O julgador interrompeu-se, refletiu longamente e prosseguiu:
- Você adotou alguma religião?
- Sim, eu era cristão – esclareceu Sucupira.
- Ajudava os católicos?
- Não. Detestava os sacerdotes.
- Cooperava com as Igrejas reformadas?
- De modo algum. São excessivamente intolerantes.
- Acompanhava os espíritas?
- Não. Temia-lhes presença.
- Amparou doentes, em nome de Cristo?
- A terra tem numerosos enfermeiros.
- Auxiliou criancinhas abandonadas?
- Há creches por toda parte.
- Escreveu alguma página consoladora?
- Para quê? O mundo está cheio de livros e escritores.
- Utilizava o martelo ou o pincel?
- Absolutamente.
- Socorreu animais desprotegidos?
- Não.
- Agradava-lhe cultivar a terra?
- Nunca.
- Plantou árvores benfeitoras?
- Também não.
- Dedicou-se ao serviço de condução das águas, protegendo paisagens empobrecidas?
Sucupira fez um gesto de desdém e informou:
- Jamais pensei nisto.
O instrutor indagou-lhe sobre todas as atividades dignas conhecidas no Planeta. Ao fim do interrogatório, opinou sem delongas:
- Seu caso explica-se: você tem as mãos enferrujadas.
Ante à careta do interlocutor amargurado, esclareceu:
- É o talento não usado, meu amigo. Seu remédio é regressar à lição. Repita o curso terrestre.
Joaquim, confundido, desejava mais amplas elucidações.
O juiz, porém, sem tempo de ouvi-lo, entregou-o aos cuidados de outro companheiro.
Rogério, carioca desencarnado, tipo 1945, recebeu-o de semblante amável e feliz, após escutar-lhe compridas lamentações, convidou, pacientemente:
- Vamos, Sucupira. Você entrará na fila em breves dias.
- Fila? – interrogou o infeliz, boquiaberto.
- Sim – acrescentou o alegre ajudante -, na fila da reencarnação.
E, puxando o paralítico pelos ombros, concluía, sorrindo:
- O que você precisa, Joaquim é de movimentação…


Texto extraído da Apostila de Estudo Sistematizado
da Doutrina Espírita – ESDE – FEB